Irmão Samuel,
Se o verbo é Jesus então ele era Deus? era, não é mais, deixou a divindade para se tornar homem é isso?
Existe para a palavra “Deus” uma característica que nos é praticamente desconhecida, que é a polissemia. E nos é desconhecida porque a história cristã a fez desaparecer de nossas análises da Bíblia.
Polissemia é a propriedade que uma palavra tem de poder ter mais de um significado. “Deus” no A.T ocorre quase 2.500 vezes. Dessas aproximadamente 20% não se referem ao Deus Eterno (não é um percentual de exceção), muitas se referem a falsos deuses e outras ocorrências se referem a anjos e homens com poder de governar e/ou julgar, etc. Por exemplo, em I Sm. 2.25 “Pecando homem contra homem, os juízes o julgarão; pecando, porém, o homem contra Yahweh, quem rogará por ele? ...”, a expressão “juízes” é tradução da palavra “elohim”, tanto que há bíblias, como a Bíblia de Jerusalém que prefere traduzir “Se um homem comete uma falta contra outro homem, Deus o julgará; mas se pecar contra Iahweh, quem intercederá por ele?...”.
Quando homens e anjos são chamados de Elohim pelo próprio Deus, não o são como “concorrentes” do Deus Eterno, eles não são semi-deuses, deuses menores ou falsos deuses. O são em um sentido permitido pela palavra. O de representantes de Deus ou governantes. Ciente disso e em um contexto dessa reivindicação o Nosso Senhor Jesus disse: “As escrituras não podem ser anuladas”
Se a palavra “Deus” sempre significasse exatamente Deus (no sentido transcendente que é praticamente o único sentido que conhecemos e que praticamente condiciona nossa compreensão para o verso que você citou), então, Jo. 1.1 talvez pudesse ser entendida como uma afirmação de que Jesus era o próprio Deus, a despeito de todas as outras passagens que apontam para um caminho diferente.
Mas, considerando aqueles versículos que eu citei e alguns outros que apontam ao Pai como o único e verdadeiro Deus, precisamos considerar a polissemia em Jo. 1.1, pois a construção da frase nos originais não está como um atributivo (uma correspondência “biunívoca”), mas como um predicativo. Não está afirmando que Jesus é o próprio Deus, mas que tem qualidades de Deus. Em João, Jesus não é um semi-deus, nem um Deus menor, nem um falso deus, é Deus dentro do que a polissemia permite e com muito maior propriedade do que anjos e homens, por ser o Filho de Deus. Por essa razão vários trinitários especialistas em grego consideram que Jo. 1.1 está qualificando o Verbo de divino ao invés de Deus. Dentre eles podemos citar Rev. Dr. Waldyr Carvalho Luz e Fritz Rienercker & Cleon Rogers, dentre outros.
Diante disso, temos algumas opções, lermos todos os outros versos que apontam Deus, o Pai, como sendo o único, um só e verdadeiro Deus, desde de Adão até o último apóstolo e a partir dele lermos Jo.1.1 ou relermos todos esses testemunhos bíblicos desde o A.T sob uma perspectiva moderna da palavra “Deus” iniciando com a ótica a partir de Jo. 1.1.
O testemunho da história eclesiástica talvez seja útil para, complementarmente, mostrar que a expressão “O Verbo era Deus”, no original grego não denotava a co-igualdade entre Deus e seu Verbo, como facilmente parecem acreditar hoje muitos leitores e estudiosos. O concílio de Nicéia em 325 d.C, todos sabem, tornou-se o primeiro concílio ecumênico na história da igreja e objetivava equacionar, dentre outras coisas, a questão de co-igualdade ou não de Deus com seu Filho Jesus Cristo. Dele participaram poucos clérigos da fala latina: Marcos de Calabria da Itália, Ceciliano de Cartago da África, o próprio Ósio de Córdova da Espanha, Nicácio de Dijon da França, e Dominus de Stridon da província do Danúbio, o restante era a esmagadora maioria de língua grega, mesmo que os latinos tenham vindo com suas respectivas comitivas. A quantidade geral de participantes é imprecisa, mas estima-se que de 150 a 300 bispos. Em especial estavam ali aqueles que viviam sob o domínio religioso do Bispo Alexandre e simpatizantes da co-igualdade, destaque-se o próprio ocidental Ósio de Córdoba, àquela época conselheiro do Imperador o que praticamente determinava qual seria o resultado do concílio. Pois bem, todos aqueles eminentes teólogos nascidos em um ambiente de fala grega, e por consequência bons conhecedores de sua própria língua materna e que eram a favor da co-igualdade, concluíram que não havia palavra ou versículo na Bíblia que afirmasse cabalmente que Jesus era o próprio Deus, mesmo eles conhecendo a expressão “καὶ θεὸς ἦν ὁ λόγος” (kai theos em ho logos) e, também, os outros versos costumeiramente citados. Esse fato deveria comunicar alguma coisa aos leitores e estudantes atuais do evangelho de João, ao menos que a expressão é plenamente suficiente para dizer que o verbo é divino, mas não plenamente suficiente para dizer que ele seja o próprio Deus. Perceba que não se pode ignorar o grande número de teólogos de fala grega que estavam ali para requerer a co-igualdade entre Deus e seu Filho, mas eles não o puderam e nem podiam fazer de forma eficaz usando só a Bíblia, pois ela não ensina isso. “Consequentemente, se se queria eliminar qualquer ambiguidade, era preciso superar os limites da linguagem bíblica” (J. N. D. Kelly in Doutrinas Centrais da Fé Cristã – 3ª Edição 2005 - Paulus. Pág. 31) e foi essa a saída nicena. Para solucionar o “problema”, com o apoio e a pedido do patrono do concílio, o Imperador Constantino, os que eram a favor da co-igualdade editaram um credo que incluía a palavra “homoousios” (consubstancial) para indicar a relação entre o Pai e o Filho numa tentativa de um suposto reconhecimento de co-igualdade, só que o termo é estranho à Bíblia, pois não consta nem no Antigo Testamento, nem no Novo Testamento, mas foi essa a solução encontrada por aqueles doutrinadores para satisfazer, ainda que precariamente, a sua teologia. Tal fato termina por provar documentalmente, visto que todos eles assinaram o credo que, mesmo na visão deles, gregos de nascença e de fala, nenhum versículo nos originais da Bíblia satisfaz o requerimento trinitário de igualdade entre Deus, o Pai, e Nosso Senhor Jesus.
Isto prova que qualquer teólogo ou gramático grego da atualidade que afirmar que Jo. 1.1 é o suficiente para provar a Deidade de Jesus está passando por cima da opinião de quem falava fluentemente, conhecia as nuanças do grego bíblico e viveu o momento da discussão lá nos primeiros séculos, pessoas de quem não se pode alegar desconhecimento da gramática e dos sentidos da língua e que acima de tudo eram a favor da co-igualdade.
Quanto a questão dos versos 2,3 que dizem que Jesus é Criador, na verdade a expressão original é “através dele” (di'auto) e isso se comprova em Hb. 1.2 “A quem constituiu herdeiro de tudo,
por quem fez também o mundo.” ou ainda Ef. 3.9 "E demonstrar a todos qual seja a dispensação do mistério, que desde os séculos esteve oculto
em Deus, que tudo criou por meio de Jesus Cristo".
De uns cinco anos para cá abençoado irmão venho estudando mais detidamente essa questão e são essas as conclusões que estou chegando. As obras que insistentemente tenho lido, além da própria Bíblia, são obras de católicas e protestantes e são elas quem revelam detalhes importantes para essa compreensão.
Daí minha conclusão que, de fato, Jesus, Nosso Senhor, não é onisciente.
Na Paz!
Valdomiro.